Conhecida como Veneza Marajoara, município paraense fica em área de várzea e cresceu em palafitas. Bicicletas e adaptações delas são veículos no local.
Afuá, cidade no arquipélago do Marajó, prova que é possível viver sem motos e carros. No local, chamado de “Veneza Marajoara”, bicicletas e adaptações dela são usadas no transporte de pessoas, a passeio ou em serviços.
“Hoje tem muita história para contar sobre meu invento”, afirma Sarito, morador de Afuá e criador da primeira bicitáxi .
Algumas bicitáxis ganham nomes próprios, como “Bat Ferrari”, a união de duas bicicletas com aros e bancos que lembram traços do super-herói Batman, fazendo ainda alusão ao carro italiano de luxo.
Alguns moradores investem nas bicitáxis, incluindo lataria, que escondem os pedais, e assessórios como som e luz a partir do uso de bateria, aproximando a estética de seus veículos aos carros de verdade.
A peculiaridade local foi foco de estudo. A pesquisadora Vanessa Simões procurou entender em sua dissertação os processos de criação e uso vividos com o bicitáxi a partir da experiência social em Afuá.
“O que mais me encanta nos bicitáxis é como eles constroem a identidade e a vida social da cidade, sendo constantemente reinventados para fins diversos. É o puro suco da inventividade e criatividade brasileira, que é infinita e muitas vezes nasce da carência de recursos, mas vai além dela”, afirma.
O município fica em área de várzea, próximo à foz do Rio Amazonas. Grande parte da cidade é suspensa em palafitas e as ciclovias estão sobre elas, em avenidas de madeira ou pavimentadas.
Em Afuá há bicitáxis que ganharam nomes de acordo com uso e serviço: a bicilância, por exemplo, é quase uma ambulância, mas os socorristas pedalam para transportar pacientes ao hospital da cidade – veja no vídeo acima.
Max Serrão de Oliveira, coordenador do Corpo de Bombeiros no município, é de outra região do Pará e está há 18 anos em Afuá. Ele se identificou com o modo de viver sob duas rodas.
“Uma cidade única, uma cidade de ar puro e alimentação saudável, além de ser um lugar muito bom pra se morar, por isso estou aqui até hoje”, diz o bombeiro.
O serviço de coleta de lixo também precisou ser adaptado à realidade da região e é feito com carregadores produzidos com madeiras, sob duas rodas.
Histórias com bicitáxi
Criador do primeiro “bicitáxi”, Raimundo Souza, 55 anos, conhecido como Sarito, idealizou o veículo em 1995 pensando na junção da bicicleta com táxi, para levar mais crianças para passear.
“As crianças gostaram e as pessoas começaram a se adaptar a andar. O nome foi a junção de bicicleta com táxi, e a partir daí comecei a cobrar para transportar”, lembra o morador de Afuá.
A produção do novo transporte caiu no gosto da população e as pessoas ganharam autonomia nas adaptações: “Hoje a gente depende do bicitáxi porque ele serve para muitas coisas”, explica Sarito.
Desde então, ele coleciona histórias: “Hoje tem muita história para contar sobre meu invento”, conta.
- “Uma vez uma mulher quase que teve o filho no meu bicitáxi , fui levar para o hospital e quase não chego a tempo. Eu cheguei ‘aperreado’ lá, fui varando para dentro do hospital”.
- “Outra vez meu próprio invento me deu medo, na frente de um cemitério: fui deixar uma senhora. Na volta, caiu um dos assessórios e veio batendo. Eu olhava pra trás e não via nada. De repente aquilo prendeu e me puxou. Um cidadão passou e me viu tremendo. Ele que viu o elástico que tinha caído e que tava batendo. Aquilo me meteu medo, foi um momento de terror”, relembra o criador sobre momento vividos pedalando sua bicitáxi.
‘Veneza do Marajó’
O acesso até o município de Afuá é por barco ou táxi aéreo. A cidade paraense fica distante 320 km de Belém. Com isso, a capital mais próxima é Macapá, no Amapá, distante 84 quilômetros, cerca de 4 horas de barco.
O contexto do nascimento da cidade de Afuá é explicado pelo professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará (PPHIST/UFPA), Agenor Sarraf:
“Como o Marajó é um grande arquipélago, é comum ter cidades que têm lugares feitos sobre madeiras, depois chão batido, depois asfalto. Mas Afuá se formou de maneira singular nessa cartografia física, inclusive com o conceito europeu de cidade, não por acaso intitulam como Veneza do Marajó”, detalha.
Nascido no Marajó e estudioso da região, Sarraf diz que a realidade de Afuá é consequência da necessidade do povo.
“Os moradores criam suas formas de vida a partir de suas necessidades e criatividade”.
Para Sarraf, Afuá reforça as possibilidades de mudanças do século XXI buscadas por grandes cidades para melhor qualidade de vida. “Me parece que as pessoas querem ter acesso aos bens e serviços da vida urbana, mas querem o sossego da vida rural”, diz
“É possível viver sem carros? Sim. Se não tivessem inventado o carro? Se tivessem só charretes? Só as bicicletas? Viveríamos só com isso. Tudo tem a ver com formação cultural e muitas cidades, grandes centros estão replanejando e recolocando bicicletas para controlar fluxo de carro, para dar acesso a espaços com mais segurança e porque é mais barato”, afirma.